quarta-feira, dezembro 09, 2009

Rua nº47 vira à esquerda e é sempre em frente


«Não é isto que quer?»


Já nem consigo sugerir, já nem me entrego à calmaria de pintar em poesia. Tudo isto é frenético, fanático, pindérico, sarcástico.
A sala era pequena, pouco familiar. Mas o resto era o mesmo, as cenas congeladas, os risos, o modo Pretérito Imperfeito de caminhar. Os edifícios direitos e lisos, as árvores do costume embebidas no céu azul turquesa lilás laranja do costume. Os boatos, os mexericos, as velhas da rua, o cão da claustrofóbica varanda que ladra à Lua, os cafés apinhados, as aconchegadoras viagens de camionete, os jantares fora da hora de jantar, o vaivém das pessoas, a usual contradança dos desejos, o zumbido dos sonhos a passarem-nos ao lado. O mesmo desigual.

Inquiriu-me assim, a mulher do cabelo recortado com salpicos do pôr-do-sol, cinco palavras mais um ponto de interrogação com toneladas de razão, inquiriu-me num tom de revolta, com um pico de tristeza também. A mulher falava de maratonas, metas, vitórias épicas, olhava-me, desenhava círculos confusos com a bordada saia rodada, retorquia, olhava-me de novo, discutia, perdia-se nas suas teorias, exigia-me a perfeição, desesperava e suspirava com o espírito apoiado na rude mão. Olhava os meus traços, olhava-me a mim.

Faltava muita coisa nessa sala, e eu sentia essa falta de dia para dia. E isso notava-se nas minhas aguarelas esquecidas, no meu F perdido, na escassez de folhas brancas, nos nunca decentes lápis de cor.
Essa falta notava-se em mim, faltava-me eu.

Numa última investida, inquiriu-me uma outra vez. Apesar do real vazio daquela sala, das janelas fechadas, estores recolhidos, caderninho mágico nunca mais visto, acusações merecidas, pensamentos soltos da semana passada que acabou com a rapariga simpática do toblerone a dizer-me «pessoa errada» e um fim-de-semana vagaroso, incluíndo claro o domingo mais a sua teimosa melancolia, apesar disto tudo, eu cantarolava uma canção dos Clã, ajeitava o meu lenço desajeitado, sorria, entregando-me ao carvão obediente. No segundo a seguir lembrei-me de olhar à volta. Numa câmara muito lenta, numa fotografia demasiado óbvia. Constatei ser uma serial killer de cadeiras, de perspectiva, resumindo: uma assassina de traços direitos e limpinhos.
E a pergunta da mulher atropelou-me, fazendo eco em todo o meu ser durante muito muito tempo, como um sino gigantesco daquelas igrejas colossais em França. Tropecei cai, deslizei até ao chão, e ali fiquei. A soluçar como se fosse uma miúda que nunca na vida tinha provado a brisa salgada do mar.

Foram um par de dias daqueles banais, de correrias. Hoje o céu era de algodão doce o que me acalmava por dentro. Pensei no teatro, nos desenhos, na geometria, na dança, na música, pensei em viagens, voluntariado, África, num Natal desejado, pensei num abraço, numa festinha ao meu cão, pensei em Itália, em exposições, em filmes, pensei num chocolate, no tempo, pensei na faculdade, num olá, pensei na coerência, pensei em Lisboa, pensei na saudade. Pensei em sonhos. E adormeci.

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