segunda-feira, abril 26, 2010

A janela da Amélia

Nas ruas esgueira-se roupa acabada de lavar.

domingo, abril 25, 2010

Botões silvestres

Daquele lugar emanava um Abril irrequieto com saudades de Junho. Lavanda que viajava de um canto para o outro na ponta dos meus dedos, vidros de cores gulosas como rebuçados, paredes que agora já não eram brancas nem solitárias, mas sim uma grande selva de flores inimagináveis, delas saltava cor, postais antigos com personalidade própria, do tecto levitavam candeeiros marroquinos, enfeitados com tecidos quentes, à janela uma grafonola debruçada, dourada e altiva, num dueto desconcertante com o silêncio. Uns passos depois uma simpática mezzanini forrada a pequenas janelinhas, luminosa, que dava para o jardim, com umas quantas cadeiras de lona colorida a espreguiçarem-se ao Sol. Se não se ouvia a casa falar, ouvia-se lá ao longe dentro dos ouvidos, mas de seguida a aproximar-se, aproximando-se de nós, o seu canto escutando a nossa alma. Os quadros que em vez de serem pintados pintavam, o murmúrio dos livros, aquele condimento perlimpimpim, especiarias alegres, minhas sementes de sabedoria. O mundo havia-se perdido e parado naquele lugar. O mundo era fino, quase transparente, as minhas mãos formando uma concha, segurando-o, podia encostá-lo docemente contra a minha bochecha. Finalmente adormecer na sua inesgotável inexperiência, que tanto amo. Cheirava a lareira, a madeira cansada, pronta a morrer, pronta a evaporar-se pela chaminé, ansiosa por tocar aquele céu verde-mar flamejante. E pelos caminhos parava. A pasteleira poeirenta, de um azul petróleo forte, na berma, à espera. Quem quer que me ouvisse deixou de me ver. Eu parava pelos caminhos. Das minhas mãos brotavam botões silvestres.

sábado, abril 10, 2010

Não percebo como é que os aviões voam

-Ainda se vêem as estrelas daí? - atira uma, duas vezes - daí, de onde tu estás?
Não é que as ruas sejam, por assim dizer, despidas de preconceitos. Vou-me sentar já sem saber se a cabeça está no lugar da cabeça. E depois, no fim de contas, são os prédios que me cumprimentam.
-Como vai Sr.58? - é amarelo e atarracado, mas tão perfeito com as suas varandinhas e vazos de barro cheios de sardinheiras a tagarelarem com o Sol.
-Muito bem, obrigada, e lá por casa?
-Está tudo bem! - Sorri.
Já ao longe acenei.
-Está tudo bem. - A ecoar mais uma vez na rua estreitinha.
Não se trata, portanto, de gostos. Quer dizer, eu não gosto de relógios. Quer dizer, gosto. Gosto da forma como ficam ligeiramente largos no meu pulso, ligeiramente como quem diz, gosto mesmo de usar o último furo da bracelete.
-Assim, sim!
E o relógio a descair pelo meu braço nu, quase até ao cotovelo. Mas depois desisti. Saber a quantas ando revelou-se altamente perturbador.
Mmmm. A consistência das coisas a desfazerem-se mesmo à nossa frente, sentir as partículas dessa tal realidade serem nada mais que sensações debaixo da língua.
-Corre! - A tua voz era clara e alegre. Azul e despachada.
E a gente corria, de maneira a tentar apanhar flocos de chuva, gotículas estridentes, lembrando gelados de vários sabores a descerem lentamente do céu. Sorvetes suspensos de onde as nossas almas já tinham morado um dia.
Tão perto do palco, tão junto da berma da estrada.
Mmmm, as mãos a emoldurarem as bochechas. Lábios finos no retrato principal. Cai o pano. Para lá das árvores, os grilos.
-Achas que algum dia um pirilampo mais aventureiro poisa no meu nariz? - Sentaste-te um pouco mais à minha frente.
E de facto, à noite o cenário era outro. Uma orla de pequenos pontos cintilantes no escuro. Não. Não eram estrelas. A tremerem pequeninamente.
-Espero que sim! Era giro - assentei- sentir parâmetros sem os sentir.
-Era.
Primeiro, a inexistência de palavras. Depois lembrares-te que palavras nunca foram precisas. Ouvi o teu sorriso logo depois. E senti a tua alma contorcer-se de tanta emoção junta. Por enquanto, ainda não pousara por ali nenhum pirilampo. Pairava agora um silêncio que contava histórias, lembrava canções.
-Ainda falas com os prédios? - A tua voz, por fim.
-Claro! - ri-me - não têm horas!
-O Sr.58?
-Na mesma. A embirrar com o correio, mais com a publicidade, as campainhas estragadas e ferrugentas. Agora têm que lhe bater à porta uma série de vezes para ele conseguir ouvir - tum tum tum! - e por vezes só à quarta é que ele ouve. Acho que ele finge que não ouve. Quando aparecem aqueles homens das agências imobiliárias, com os placares com letras gordas VENDE-SE, ele finge, juro-te.
-E ninguém o compra?
-Não. Todas as semanas - quando ele ouve baterem à porta - vão grupos de pessoas ver a casa. Mas ninguém, ninguém compra o Sr.58. Um palácio escondido. Um refúgio amarelo.
-Devias comprar o Sr.58.
-Um dia - inclinei-me para o teu colo - sem dúvida.
-Um dia.
A inexistência de palavras, sons, outra vez.
-Ainda se vêem as estrelas daí? - atiras uma, duas vezes a pergunta contra o vazio da distância - daí, de onde tu estás?
Ouviu-se um grande suspiro. Agora é noite, e é noite em qualquer lado. E é engraçado como as comunicações nunca são o que deviam ser, e sinceramente eu gostava de perceber como é que aquela linha de electricidade funciona e gera energia entre as pessoas, mas se calhar já é um bocado tarde para isto. Talvez baste só um abraço, e adeus ao vazio.
-Se algum dia te pousar um pirilampo mais aventureiro no nariz contas-me? - soltei eu, devagarinho.
-Achas que pousa? - alma criança, como sempre.
-Eu acho que pousa - tenho tantas saudades tuas, digo? - pousa de certeza.
Daqui adivinho as estrelas a boiarem num azul índigo que se evola na própria escuridão violeta da noite. Nada é claro ou distinto. Apenas as vejo, a tremerem pequeninamente, a cintilarem pirilampamente na nossa orla demorada. Dá-me vontade se ser uma dessas estrelas a boiar no nada, também. Etérea. E eternamente.