sábado, abril 10, 2010

Não percebo como é que os aviões voam

-Ainda se vêem as estrelas daí? - atira uma, duas vezes - daí, de onde tu estás?
Não é que as ruas sejam, por assim dizer, despidas de preconceitos. Vou-me sentar já sem saber se a cabeça está no lugar da cabeça. E depois, no fim de contas, são os prédios que me cumprimentam.
-Como vai Sr.58? - é amarelo e atarracado, mas tão perfeito com as suas varandinhas e vazos de barro cheios de sardinheiras a tagarelarem com o Sol.
-Muito bem, obrigada, e lá por casa?
-Está tudo bem! - Sorri.
Já ao longe acenei.
-Está tudo bem. - A ecoar mais uma vez na rua estreitinha.
Não se trata, portanto, de gostos. Quer dizer, eu não gosto de relógios. Quer dizer, gosto. Gosto da forma como ficam ligeiramente largos no meu pulso, ligeiramente como quem diz, gosto mesmo de usar o último furo da bracelete.
-Assim, sim!
E o relógio a descair pelo meu braço nu, quase até ao cotovelo. Mas depois desisti. Saber a quantas ando revelou-se altamente perturbador.
Mmmm. A consistência das coisas a desfazerem-se mesmo à nossa frente, sentir as partículas dessa tal realidade serem nada mais que sensações debaixo da língua.
-Corre! - A tua voz era clara e alegre. Azul e despachada.
E a gente corria, de maneira a tentar apanhar flocos de chuva, gotículas estridentes, lembrando gelados de vários sabores a descerem lentamente do céu. Sorvetes suspensos de onde as nossas almas já tinham morado um dia.
Tão perto do palco, tão junto da berma da estrada.
Mmmm, as mãos a emoldurarem as bochechas. Lábios finos no retrato principal. Cai o pano. Para lá das árvores, os grilos.
-Achas que algum dia um pirilampo mais aventureiro poisa no meu nariz? - Sentaste-te um pouco mais à minha frente.
E de facto, à noite o cenário era outro. Uma orla de pequenos pontos cintilantes no escuro. Não. Não eram estrelas. A tremerem pequeninamente.
-Espero que sim! Era giro - assentei- sentir parâmetros sem os sentir.
-Era.
Primeiro, a inexistência de palavras. Depois lembrares-te que palavras nunca foram precisas. Ouvi o teu sorriso logo depois. E senti a tua alma contorcer-se de tanta emoção junta. Por enquanto, ainda não pousara por ali nenhum pirilampo. Pairava agora um silêncio que contava histórias, lembrava canções.
-Ainda falas com os prédios? - A tua voz, por fim.
-Claro! - ri-me - não têm horas!
-O Sr.58?
-Na mesma. A embirrar com o correio, mais com a publicidade, as campainhas estragadas e ferrugentas. Agora têm que lhe bater à porta uma série de vezes para ele conseguir ouvir - tum tum tum! - e por vezes só à quarta é que ele ouve. Acho que ele finge que não ouve. Quando aparecem aqueles homens das agências imobiliárias, com os placares com letras gordas VENDE-SE, ele finge, juro-te.
-E ninguém o compra?
-Não. Todas as semanas - quando ele ouve baterem à porta - vão grupos de pessoas ver a casa. Mas ninguém, ninguém compra o Sr.58. Um palácio escondido. Um refúgio amarelo.
-Devias comprar o Sr.58.
-Um dia - inclinei-me para o teu colo - sem dúvida.
-Um dia.
A inexistência de palavras, sons, outra vez.
-Ainda se vêem as estrelas daí? - atiras uma, duas vezes a pergunta contra o vazio da distância - daí, de onde tu estás?
Ouviu-se um grande suspiro. Agora é noite, e é noite em qualquer lado. E é engraçado como as comunicações nunca são o que deviam ser, e sinceramente eu gostava de perceber como é que aquela linha de electricidade funciona e gera energia entre as pessoas, mas se calhar já é um bocado tarde para isto. Talvez baste só um abraço, e adeus ao vazio.
-Se algum dia te pousar um pirilampo mais aventureiro no nariz contas-me? - soltei eu, devagarinho.
-Achas que pousa? - alma criança, como sempre.
-Eu acho que pousa - tenho tantas saudades tuas, digo? - pousa de certeza.
Daqui adivinho as estrelas a boiarem num azul índigo que se evola na própria escuridão violeta da noite. Nada é claro ou distinto. Apenas as vejo, a tremerem pequeninamente, a cintilarem pirilampamente na nossa orla demorada. Dá-me vontade se ser uma dessas estrelas a boiar no nada, também. Etérea. E eternamente.

3 comentários:

  1. ler o que escreves acalma-m, faz-m lembrar que ainda há lugares onde as estrelas se vêm, onde o sol se sente e onde podemos voar com os aviões e sentir o q mais ninguém sente no que APARENTEMENT não se sente... Faz-me lembrar que a vida é muito mais que esta correria, que esta idealização de tudo... Apetece-m pegar em muitas pessoas que conheço aqui, pessoas que têm um brilho natural msm sem conseguirem ver as estrelas e mostrar-lhes todo este "tão", tão diferente, tao intenso, tao calmo, tao mais, tao(...)tao tudo... mas primeiro tenho eu que lá voltar.

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  2. Antes de lá voltares, levas-me contigo? Que saudades do teu brilho natural, do modo como vês as estrelas, mesmo adormecidas, no turquesa pálido do dia.. sentada no chão. É a relembrar isto, que me acalma, relembrando-te*

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  3. Descobri-te :D


    e eu é que escrevo bem?!

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