sexta-feira, fevereiro 19, 2010

Sorriso-palhaço

Ainda no outro dia passei por lá e eu sei, eu lembro-me, o que tu desejavas era que o Sol te invadisse os cabelos sem que batesse à porta primeiro, que a relva fosse o cabide das tuas roupas. Já te estou mesmo a imaginar; agora andas por uma casa e tudo o que vês são rectângulos. Os livros, rectângulos. Os armários, rectângulos. Os pratos, rectângulos. A chuva brilhante molha a calçada, as roseiras não podadas, os candeeiros amarelos. Dois comboios passam, aposto que estás aninhada do outro lado, junto a uma coluna cinzenta e impotente, no chão.
Eras fã de livros velhos poeirentos amnésicos, espreitavas lá pela janela da frente toda torta, uma espécie de marionete trapalhona, batias energeticamente no vidro, umas quantas gargalhadas tuas iam ao céu e pareciam ficar a pairar lá em cima para todo o sempre. Bom dia, dizias e entravas, sorrias mesmo que não te sorrissem de volta, implicavas quase sempre com o degrauzinho da entrada, e ias abrir livros em quinhentos pedaços amnésicos, jorros de outras realidades. Sorrias mesmo que não te desse vontade de sorrir. Às vezes tremo ao pensar que te podia ter salvo. Cumprimento as árvores de tão mudas que estão, conto as nuvens, apanho e solto umas estrelas, como que pirilampos a iluminarem-te a tez, olhos pintados de um verde aguado.
Houve um dia que a senhora aqui do lado da mercearia, muito amiga da tua avó, comentou com um ar preocupado o estado dela. Que já não era ela. Esta menina aqui é mesmo muito parecida com a minha Ana. Deves-te ter extinguido naquele quarto, a luz pequenina a tremelicar, a tua sombra preta carregada contra a parede. Mas desta vez deves-te ter extinguido não como as estrelas-pirilampos, pouco a pouco, que eu te oferecia de vez em quando, mas sim como a chama de uma vela fugaz, num sopro rouco e quebradiço. E eu quase que adivinho as noites que não dormiste, a vontade de fugir, e fugiste, depois o sentimento de cobardia que devias carregar no peito. Uma cobardia asmática que não te deixava respirar bem. Respiravas aos soluços.
Sextas-feiras era dia de compotas melosas, doces açucarados. E claro chá, muito chá. E do chá tratavas tu, dava-te um gozo ires à lojinha da rua da frente, que tinha prateleiras que cobriam as paredes desde o chão ao tecto divididas por pequenos quadradinhos com portinhas transparentes, tu dizias que faziam lembrar milhões de janelas salpicadas divertidas e vivas, e podia-se ver a variedade de cores das tuas tão queridas ervas aromáticas, os cheiros de outros mundos que tu veneravas tanto naquela loja. O cheiro a móveis gastos e pesados, o cheiro da luz a entrar pelas grandes persianas, ficavas completamente absorta de tudo, por vezes chegavas mesmo a levar um dos teus livros amnésicos e sentavas-te debaixo da prateleira de hortelã-pimenta, uma das tuas eleitas. Mas especialmente ias todas as sextas e quartas e terças, porque o dono da loja de chás te intrigava. Porque o dono da loja de chás era antipático. Carrancudo. Pior que isso, infeliz. E se havia coisa em que tu não acreditavas era em pessoas antipáticas, ainda por cima donos de lojas fantásticas de chás como aquela. Tu falavas, sorrias, agitavas as mãos, contavas como uma ansiosa criança as melhores histórias dos teus livros, um ou outro filme que tivesse estreado, um teatro capaz de fazer sonhar qualquer um que tinhas ido ver na semana passada. E rias-te sozinha, despreocupada e levemente. Mas tudo o que arrancavas do senhor Tomás era uma boca carrancuda, um olhar antipático e; qual vai ser o chá de hoje, menina? Óbvio que não desistias, dizias que se o senhor Tomás te deixava ficar lá a ler no chão da loja era porque lá no fundo gostava da tua companhia. O teu barulho alegre era capaz de preencher os espaços mais solitários do universo. E acho que ele acabou por se habituar a ti, era um homem rotineiro e aparentemente deserto, o senhor Tomás. Não se sabia se tinha família, vivia sozinho, e parecia carregar nos olhos uma amargura incurável. Partiu cinco meses depois de ti.
Abraçavas páginas que em tempos criaste, que nasciam das tuas mãos. Parecias querer afogar tudo ali; os espaços que já não pertenciam a nenhum tempo, o tempo que te ceifava sem te dar antes tempo a ti de olhar uma outra vez. Choravas, e não havia estrelas-pirilampos que te pintassem uma aguarela na noite. A vela apagou-se e acho que nunca mais ganhaste coragem de te desabares no mundo de falar alto, isto é, um tom acima do pensamento, doía falar alto, ouvia-se a dor latente se falasses alto, e isto implicava que alguém a estaria a ouvir, e se alguém a estivesse a ouvir era alguém que te amava e que amavas também, e isto magoava-te e destruía-te por dentro ainda mais do que a tua própria dor; saber que deixavas uma pessoa triste porque tu estavas triste.
A lojinha de chás já não existe, é agora uma loja de computadores toda sofisticada, a preto e branco, deslavada. A senhora aqui da mercearia do lado há muito tempo que não aparece por estas bandas, ela que até costumava vir buscar uns livros para os netos e pôr-me a par das novidades do bairro. Depois da tua avó se ter tornado numa estrela-pirilampo, acho que ela nunca mais conseguiu cá voltar.
Este perfume a letras velhas devolve-lhe memórias dolorosas.

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Cenografia


Pegava no livro como se na noite pegasse. Levou consigo as pessoas num bolso, os amores nuns lábios. A rua magricela, as escadas e ela. Arrancou num carro, mergulhou numa estrada. Agora já nem dava tanta importância às luzes lá de fora, a humidade que o tornava transparente. Semáforos, portagens, praias. E como uma criança colava a testa instintivamente contra a janela embaciada, respirava, acariciava aquele nevoeiro envidraçado, sorria, olhava, queria ser rua. Rua e noite. E sentia saudade, e não ligava a datas, e aqueles olhos diziam sempre algo mais, mas o corpo mentia. Ou então mentia ele. As viagens eram sempre longas.
Ela não passava de um animal da Natureza, aninhada no banco do lado, despreocupada, longe das tristezas lá de fora. E só a fina camada de vidro ao seu lado direito a separava desse lá de fora, acabava por ser assustador. Engraçado o modo como ele, mãos rudes pesadas, a olhava de esguelha, devagarinho, quase só para se certificar que ela estava mesmo ali, que nada era um lago adormecido de sonhos, breve. E no segundo a seguir olhava as árvores lá distantes, quase envergonhado, como se elas adivinhassem as suas mãos de pintor, sonhadoras. Era ele e a estrada. E um ponto qualquer num infinito apetecido.
Ele e ela. Num deserto?

domingo, fevereiro 07, 2010

Interlúdio:508

Três seis sete sete nove. Talvez a mulher do telefone lhe ligasse. Talvez a pessoa do outro lado do telefone falasse, chove. Entravam na sala sem convite, braços cansados do Sol reflectindo-se nas paredes, salpicos indígenas vermehos cinzentos. Quatro telas adormecidas no corredor, uma no chão. Defronte um piano ausente. O velho soalho rangia, chove, chovia. Uns pés nus encostados à janela. Ensaiaste o respirar.