segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Cenografia


Pegava no livro como se na noite pegasse. Levou consigo as pessoas num bolso, os amores nuns lábios. A rua magricela, as escadas e ela. Arrancou num carro, mergulhou numa estrada. Agora já nem dava tanta importância às luzes lá de fora, a humidade que o tornava transparente. Semáforos, portagens, praias. E como uma criança colava a testa instintivamente contra a janela embaciada, respirava, acariciava aquele nevoeiro envidraçado, sorria, olhava, queria ser rua. Rua e noite. E sentia saudade, e não ligava a datas, e aqueles olhos diziam sempre algo mais, mas o corpo mentia. Ou então mentia ele. As viagens eram sempre longas.
Ela não passava de um animal da Natureza, aninhada no banco do lado, despreocupada, longe das tristezas lá de fora. E só a fina camada de vidro ao seu lado direito a separava desse lá de fora, acabava por ser assustador. Engraçado o modo como ele, mãos rudes pesadas, a olhava de esguelha, devagarinho, quase só para se certificar que ela estava mesmo ali, que nada era um lago adormecido de sonhos, breve. E no segundo a seguir olhava as árvores lá distantes, quase envergonhado, como se elas adivinhassem as suas mãos de pintor, sonhadoras. Era ele e a estrada. E um ponto qualquer num infinito apetecido.
Ele e ela. Num deserto?

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