quinta-feira, maio 20, 2010

Do lado de lá da sombra


Hoje fui visitar o senhor Tomás. Estava sentado no banco verde cá de fora, com as mãos pousadas sobre os joelhos e os dedos entrelaçados uns nos outros, visto ao longe parecia um vulto azul, por causa do avental que tinha vestido, e o banco corrido fazia lembrar aqueles bancos antigos das estações de comboio, muito gastos muito velhos, e o senhor Tomás olhava para o nada, pelo batuque constante do pé contra chão, dava a sensação que estava impaciente, como se esperasse que um comboio entrasse por ali a dentro e o levasse para longe. Ou talvez esperasse alguém. Quando deu conta que eu me dirigia em direcção a ele desviou o olhar. Acenei-lhe. De seguida, um sorriso breve e muito contrariado.
-É cedo. Não devias estar nas aulas?
Só hoje me apercebi da verdadeira cor dos olhos do senhor Tomás. Deve ter sido da luz, que na altura incidiu naqueles olhos curiosos de ave de rapina. Eram de um cinzento pérola desmaiado, com o Sol ficavam mais brilhantes e vivos, por momentos pensei ver retalhos de lágrimas, suspensas ou esquecidas, deixadas ao acaso nas pestanas esbranquiçadas...
-Só entro daqui a meia hora, pensei em vir reabastecer o stock de chá. Sabe como é, isto dos meus ataques de inspirações dá cabo da despensa de chás a qualquer um, não é verdade?
Riu-se. Reparou no bloco que eu trazia debaixo do braço. Por uns segundos ficou estático como uma montanha, como se quisesse falar e contraiu-se, empurrando as palavras de novo pela garganta abaixo. Quando o senhor Tomás se encolhe para dentro os olhos encolhem-se com ele. Tornam-se azuis-esverdeados, não se distingue o azul do verde, mas é um tom triste. Levantou-se.
-Então, já mais perto de te tornares numa artista de renome? - apontou para o bloco.
-Ah, isto? Não, são só uns esboços, uns rabiscos. É por diversão, para passar o tempo...
A verdade é que eu ainda tinha duas caixas de hortelã-pimenta e uma de camomila. Mas a semana passada esteve com a loja fechada, sem dar nenhuma explicação a ninguém. Não que ele algum dia o fizesse, diz que as únicas explicações que tem de dar é ao seu gato e ponto final. Mas fiquei preocupada. As pessoas cochicham, dizem-no feiticeiro, maluco. Uns dizem que veio de África, por causa do seu tom de pele, mas de facto ninguém sabe, o senhor Tomás aterrou aqui com a sua lojinha de chás, que para mim foi uma salvação, e por cá ficou. Disseram-me que partiu depois de eu me ter ido embora, por causa da minha avó... sei que gostava dela, e sei que lá no fundo também deve gostar de mim. Mas nunca tocamos no assunto.
-Entra, entra! Tenho umas novidades para ti. Chá da Índia, acabadinho de chegar, laranja e gengibre, aromático e cheio de especiarias, um manjar, ou neste caso, a bebida dos deuses! - a sua voz orgulhosa. Soltou uma gargalhada.
-Especiarias, hein?
-Nunca saberás, segredo da casa.
-Senhor Tomás, se eu tivesse de fazer assim um teatro sobre a vida, para depois o trabalhar com idosos, sobre o que é que eu escrevia?
-Idosos? - riu-se - falas de nós como se fôssemos uns dinossauros!
-Oh, dinossauros não... mas assim uma biblioteca cheia de histórias.
-Não sei miúda. Tens medo de envelhecer?
-Não, eu nunca vou crescer.
-Ah, esse é o espírito!..
Ficámos uns quantos minutos em silêncio. O ar era abafado e pesado, por causa do cheiro das madeiras velhas e das histórias que flutuavam entre as prateleiras. Mas eu adoro.
-Não me respondeu. Escrevo sobre o quê então?
-Ora - levantou o sobrolho - não estás à espera que eu te entregue as respostas todas pois não?
-Mas..
-O elixir da vida. Escreve sobre isso. Tu sabes o segredo, não sabes? - o sorriso dele iluminou-se.
Fui a correr para apanhar o autocarro, com o saquinho de chá da Índia numa mão e o bloco dos rabiscos na outra.