sexta-feira, junho 18, 2010

Mar à vista

-Então adeus Ana.

Já? Quase um ano. Um ano de conversas, velas desfraldadas como dobras de um mapa, quando o vento soprava, de um barco pirata sem destino. Eram os meus ténis que me levavam pelas ruas entardecidas de memórias, o céu algodão doce por cima de mim, as paredes brancas a sussurrarem-me histórias enjaneladas, subir as escadas, depois voltar a desce-las de forma desigual. Tecer passos no corrimão, o ranger da madeira, acender a luz dia sim dia não. Saber que não sei o caminho, mas saber que o sei, saber que a camionete pára às horas certas na rua grande. Atravesso a estrada, paro. Atravesso o outro lado da estrada não paro e corro. O meu lenço corre atrás de mim, de longe devo parecer um melro negro à caça. A rua pequenina, os prédios de cores sonolentas, passo pelo café dos senhores bêbados, não me ligam, já me conhecem, atravesso a última estrada e desta vez nem olho para o lado, chego ao portão e sei qual é o botão, mas se me perguntarem não sei qual é o andar. Subir as escadas uma vez mais, depois voltar a desce-las de forma desigual.
-Como correu esta semana?
A voz doce, como compota de morango, o olhar também, mas a descair mais para duas grandes amoras selvagens, e o sorriso como uma onda do mar simpática que nos refresca sem aviso prévio.
-Bem, acho que bem.
Nunca soube se quando as paredes, não as brancas cá de dentro a que tanto me afeiçoei, mas as lá de fora quentes e pegajosas, nunca soube se estas paredes me comprimissem, se eu podia ser como a chuva e condensar-me, vagarosamente, gotículas azuis e ser assim, gotícula de cristal, até ser ar, até ser algodão cor-de-melancia numa nuvem a pairar lá no mar de vento. Nunca encontrei o limite de me poder desfazer, o orgulho não permite, ou a vergonha, ou o receio.
-É a última sessão.
-Eu sei.
Mas não sabia.
Encolhi-me. Agora do outro lado da mesa havia uma expressão estranha. Olhou para mim muito séria, e desfez-se com uma agilidade de golfinho que eu nunca tinha visto antes, numa gargalhada sincera e sumarenta. Olhou-me outra vez.
-Sabes qual foi a primeira frase que me veio à cabeça?
Ri-me.
-Não, qual?
-Eu criei um monstro!
Agora riamo-nos as duas, descontroladas, as nossas gargalhadas lembravam um bando de pássaros ao longe, o bater das suas asas ao mesmo tempo, livres e despreocupadas.
-Um monstro?
-Sim!
-Prometo que desta vez, desta vez não estou a tapar o Sol - a minha alma a sorrir por todos os poros - esta é a Ana do vento, e eu sou feliz, e eu quero lutar, e dar importância ao que importa mesmo, quero fazer teatro no Verão, e andar aos saltos pelo meio da rua, leve. Se sou um monstro não me importo. Ao menos sou um monstrinho feliz, com garra.
Os olhos, duas amoras escuras, agora pareciam brilhar. Arrepiei-me, encolhi os ombros, esbocei um sorriso para afastar a súbita impressão que tinha no olhar, e aninhei as mãos no meio das minhas pernas, que é o que eu faço sempre quando me emociono um bocadinho mais. Mas afinal era o fim de uma longa viagem. A janela estava aberta e daí corria uma brisa que cheirava a pôr-de-sóis, a baloiços, e a carrosséis cheios de amor, tudo por descobrir, tudo por inventar. Afinal, era só mais o começo de uma outra longa viagem.
-Então adeus Ana.
-Gosto mais de dizer até já!

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