quinta-feira, agosto 20, 2009

Página cruzada



Gostava de voltar a escrever.
Quando não pensava sequer duas vezes na palavra prestes a pintar,
Quando a atirava contra o papel salpicada, ilegível, quando não a percebia.
Gostava de escrever outra vez, daquela maneira,
Quando não percebia as palavras mas elas percebiam-me a mim.
Eu gosto. Quando cruzo as pernas,
Apanho o cabelo num gesto desajeitado
Com o caderno deitado sobre mim.
E as palavras lá, a dançarem ao som do nada.
A dançarem comigo. Não danço há séculos.
Eu gostava quando elas me percebiam
Quando beijava o papel e elas assim acordavam,
De dias e noites em que não ia até ao meu inferno.
Ao meu doce inferno de palavras
Que incendiava o papel
Em chamas viradas do avesso.
Agora trocámos (mais ou menos) de papéis.
Agora penso pelo menos cinco vezes
Antes de atirar a palavra contra a tela.
Penso tanto que, na maior parte das vezes,
Acabo por não salpicar nada
E deixo a parede em branco,lisa.
Continuo sem as perceber
Mas elas também já não me percebem a mim.
Já não dançam comigo.
Já não se encostam aos meus lábios.
O nosso beijo esfumou-se
Lenta lenta lentamente,
Como o nevoeiro ao longe...
Já não sabem de nada.
Já não sabem a nada.
As palavras já não sabem de mim.
Não tenho ido ao meu inferno
Onde elas me revelavam
Onde elas gritavam por mim.
Gostava que elas falassem, outra vez.


1 comentário:

  1. Demasiado verdade...
    As palavras dizem demasiado...
    Pesam demasiado...
    Nós percebemos muito pouco o que elas carregam...
    Quem escreve as palavras aprendeu a escrever...
    Quem pensa controlar o que escreve é escritor...
    Quem seente as palavras está vivo...
    Quem deixa que as palavras o escrevam a si é artista...

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